Pegue tudo o que a sociedade ensina, separe apenas algumas coisas e aperte a descarga.






sexta-feira, 9 de julho de 2010

Sebo


O homem disse o próprio nome e ficou me olhando atentamente. Como alguém que tivesse atirado uma moeda num poço e esperasse o "plim" no fundo.
Repeti o nome algumas vezes e finalmente me lembrei. Plim. Mas claro.

— Comprei um livro seu não faz muito.
Ele sorriu, mas apenas com a boca. Perguntou se podia entrar. Pedi para ele esperar até que eu desengatasse as sete trancas da porta.
— Você compreende — expliquei —, com essa onda de assassinatos...
Ele compreendia. Estranhos assassinatos. Todas as vítimas eram intelectuais. Ou pelo menos tinham livros em casa. Dezesseis vítimas até então. Se soubesse que seria a décima sétima eu não teria me apressado tanto com as correntes.
— Você leu meu livro? — ele perguntou.
— Li!
Essa terrível necessidade de não magoar os outros.
Principalmente os autores novos.
— Não leu — disse ele.
— Li. Li!
Essa obscena compulsão de ser amado.
— Leu todo?
— Todo.
Ele ainda me olhava, desconfiado. Elaborei:
— Aliás, peguei e não larguei mais até chegar ao fim.
Ele ficou em silêncio. Elaborei mais:
— Depois li de novo.
Ele nada. Exclamei:
— Uma beleza!
— Onde é que ele está?
Meu Deus, ele queria a prova. Fiz um gesto vago na direção da estante.
Felizmente, nunca botei um livro fora na minha vida. Ainda tenho — ainda tinha — o meu Livro do bebê. Com a impressão do meu pé recém-nascido, pobre de mim. Venero livros. Tenho pilhas e pilhas de livros. Gosto do cheiro de livros novos e antigos. Passo dias dentro de livrarias. Gosto de manusear livros, de sentir a textura do papel com os dedos, de sentir seu volume na mão. Me ocupo tanto de livros e quase não me sobra tempo para a leitura.
Ele encontrou seu livro. Nós dois suspiramos, aliviados. Como é fácil fazer a alegria dos outros, pensei. Com uma pequena mentira eu talvez tivesse dado o empurrão definitivo numa vocação literária que, de outra forma, se frustraria. Num transbordamento de caridade, declarei:
— Que livro! Puxa!
Mas ele não me ouviu. Apertava o livro entre as mãos. Disse:
— O último. Finalmente.
— O quê?
Ele começou a avançar na minha direção. Contou que a tiragem do livro tinha sido pequena. Quinhentos exemplares. Sua mãe comprara 30 e morrera antes de distribuir aos parentes. Ele tinha ficado com 453. Dezessete cópias tinham acabado num sebo que, através dos anos, vendera todos. Ele seguira a pista de 16 dos 17 compradores e os estrangulara. Faltava o décimo sétimo.
— Por quê? — gritei. E acrescentei, anacronicamente: — Homem de Deus?
No livro tinha um cacófato horrível. Ele não podia suportar a idéia de descobrirem seu cacófato.
— Eu não notei! Eu não notei! — protestei.
Não adiantou. Ninguém que tivesse lido o livro podia continuar vivo. Ele queria deixar o mundo tão inédito quanto nascera.
— Mas essas coisas não têm import... — comecei a dizer. 
Mas ele me pegou e me estrangulou.
Bem feito! Para eu aprender a não ser bem-educado. Meu consolo é que depois ele descobriria que as páginas do livro não tinham sido abertas e o remorso envenenaria suas noites. Enfim. É o que dá freqüentar sebos.

Luis Fernando Veríssimo

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